História de criança para adulto ler -volume I

A procura de anjos


Eu realmente acreditava que eles existiam. Andava a procurar por eles insistentemente. Era um jeito infantil de suportar a solidão. Fingindo que algo invisível existia e que estava a cuidar de mim. Por algum motivo secreto que eu não entendia. Pensava dessa forma que eu era alguém muito especial e que tudo valeria a pena. Apesar de tudo o que passava. Como havia sido concebida por uma mãe católica apostólica romana e praticante. E como ela praticava! Nossa casa vivia cheia de santos de todos os tamanhos, designações e nacionalidades. Um prato cheio pra quem procurava anjos. Assim comecei a procurar meus anjos no lugar que possivelmente falaria deles... na Bíblia. E assim fiz. Eram lindos. Louros, cabelos cacheados e uma pele alva como a neve. Fiquei ali deslumbrada a olhar os seres perfeitos. Satisfeita por ter encontrado meus anjos pensei o que ia fazer. Tinha sido até muito fácil. Eu achava com minha mente infantil que iria enfrentar grandes dificuldades para encontrar meus anjos. E no entanto. Eu já havia sido alfabetizada nessa época e apesar de contar com pouco mais de 6 anos escrevia razoavelmente. Afinal o que esperar de uma criança que vivia com a cabeça enfiada na gramática da escola e na Bíblia? Além disso outro lugar que eu vivia com a minha cabeça era nas nuvens. Era bem mais fácil sonhar com meus anjos assim. Então começou a acontecer. Eu simplesmente apagava. Vendo televisão, na escola, na aula de educação física e na igreja. Tinha a sensação de tremores e logo depois mergulhava em uma escuridão total. Sempre despertava com as pessoas em volta de mim. Esfregavam álcool no meu pulso e me faziam cheirar pó de café para estimular uma rápida reanimação. Era terrível e eu comecei a entrar em pânico quando sentia que os tremores começavam a se manifestar.Lembro que nunca fui uma criança muito alegre e extrovertida, porém essa enfermidade me transformou em uma criança calada e brigona. Era meu esquema de defesa. Deixada de lado por colegas da escola e até por meus irmãos os meus anjos foram embora. Deixei de acreditar neles. Como podiam ter me deixado naquela situação? Pra que eles serviam afinal? Comecei a achar que eles estavam preocupados com os santos da igreja e provavelmente não sobrava tempo pra mim. Paciência! Eu ia arranjar outras companhias. Lembro que essa decisão foi tomada no dia que ao perder a consciência cai no asfalto da rua que atravessava pra chegar na escola. Minha língua foi lesionada na vertical pois caí pra frente com o rosto no chão. Levei vários pontos para unir a minha língua e fiquei sem poder falar e alimentava-me com líquidos. Fiquei muito calada por vários dias mesmo depois da retirada dos pontos e sentia um gosto amargo na boca. Fiquei muito desconfiada de que havia algo errado comigo. Era preciso ficar mais protegida ainda. O jeito era isolar-me mais ainda. E assim eu fiz.
O ORIXÁ NEGRO

























Então veio a febre. E uma dor insuportável no braço esquerdo. O médico diagnosticou como febre reumática. Eu até não fiquei preocupada. Os desmaios tinham parado. Era melhor o reumatismo do que aquelas crises inexplicáveis de desmaio. No dia que fomos ao médico pra pegar o resultado dos exames minha mãe cismou de entrar na igreja pra rezar. Me deixou sentada no degrau da entrada da igreja tomando sol e entrou. Demorou. Demorou e não saía. Levantei e entrei. Como já havia feito inúmeras vezes. Era a igreja da padroeira da cidade. Na entrada do lado direito ficava fixado na parede a imagem de um Cristo pregado na cruz. Eu sabia que ela estava lá. Já tinha visto das vezes anteriores que estivera lá com minha mãe e no casamento da minha tia. Mas naquele dia.... era diferente. A imagem do Cristo media dos pés até a cabeça uns 7 metros e tinha um sangue que escorria da testa, os olhos eram muito reais e os pés impressionavam. Eu lembro de entrar e ficar na frente da imagem sem conseguir sair do lugar. Olhei fixamente os pés e depois os joelhos que sangravam... fui olhando sem conseguir sair do lugar. Então de repente tive a sensação que o Cristo estava vivo e que me observava.Podia sentir o olhar dele em cima de mim. Saí dali em pânico com um medo absurdo. Não entendia o que estava acontecendo. Sentei no degrau e quando ela chegou eu nada disse. Comecei a usar quinzenalmente uma substância injetável que causava uma dor muito aguda. Era difícil determinar qual era a dor da enfermidade e qual era a dor do medicamento. Depois eu acostumei.Mas a febre reumática persistia.Os dedos da mão estavam endurecidos e eu não conseguia juntá-los nem para segurar um copo.Andava com uma espécie de tipóia, porque quando o braço ficava solto, ao andar eu tinha a sensação de que ele ia cair. Com o resultado dos exames apresentando um aumento da infecção, o médico encaminhou-me para um especialista em outra cidade. Naquela noite eu fui dormir sentindo que precisava de uma resposta. Pensei nos meus anjos. Não tinha reparado em como eles eram diferentes de mim. O meu tom de pele moreno, o meu cabelo crespo e o meu nariz achatado. Percebi também que nas estampas dos anjos eles sempre protegiam lindas crianças louras ou com cabelinhos bem lisos. Talvez fosse esse o problema. Eu. Fui dormir. Sentia muito calor e não conseguia me mover. Mas os olhos eu consegui virar e olhar.E então eu o vi.Em pé do meu lado direito ele me observava. Eu pensei que estava sonhando... mas olhei na porta do meu quarto e vi minha mãe e meus irmão na sala vendo televisão. Ali de pé ele permanecia olhando pra mim. Nunca havia visto alguém tão alto.Estava sem camisa e usava uma espécie de fralda de pano. Tinha um olhar forte fixado nos meus olhos e falava através deles. Sentia que não ia fazer-me mal. Segurava na mão direita uma espécie de lança de madeira. Era negro. Uma cor de pele que eu nunca tinha visto antes. Não era como a cor da minha mãe e dos parentes dela. Era tão bonita aquela cor da pele dele que me lembrava a noite. O tom de pele era tão escuro que no início tinha tido dificuldade em enxergá-lo no canto direito do meu quarto que estava com a luz apagada. Lembrando dele hoje sei que era um guerreiro. Eu não sentia que ele fosse alguém estranho. Mas não conseguia lembrar quem era.Tinha a certeza que estava sendo atraída pra ele. Como se fosse um redemoinho. Não adiantava eu tentar resistir. O meu quarto,a minha cama e a minha casa estavam ficando pra trás. Fechei os olhos para esperar ser tragada por aquela energia que me puxava pra ele.












O SONHO NA ÁFRICAEu estava caminhando num lugar sozinha. Era uma terra seca e não tinha casas por perto e havia bem na minha frente uma pequeno riozinho. Eu fiquei olhando sem entender onde eu estava. Mas não achava que estava sonhando. Era muito real.Sentia os meus pés descalços pisando na terra.Comecei a ouvir um som de vozes e fiquei olhando pro outro lado do pequeno rio. Então eu vi um grupo de pessoas que vinham chegando. Eles carregavam uma espécie de guarda chuva gigante e uma mulher caminhava no meio deles vestida de branco. Não sei dizer porque tive a sensação de que era alguém muito, muito velha. Talvez fosse o jeito que ela andava. Inclinada e com as mãos na altura da cintura como se tentasse se equilibrar.Não conseguia entender o que diziam. Na verdade parecia que cantavam. Era muito bonito mas fiquei triste com o som das vozes deles. Parecia um lamento. Depois disso eu me vejo de joelhos e inclinada na frente dessa senhora. Ela está sentada numa espécie de banqueta bem na minha frente. Não olha pra mim. Olha pro chão mas fala o tempo todo e eu não entendo o que ela diz. Tem uma voz rouca e muito cansada e me transmite muita tranquilidade. De tanto repetir aquelas palavras eu começo a falar também:Onandê, Ouandê,Oparra... O som invade a minha mente e o meu corpo parece tão leve!Fico olhando pra ela sem conseguir ver o seu rosto. Tem outras pessoas à nossa volta mas eu sinto tanta paz junto dela que não quero deixar de olhar o seu jeito tão antigo de se sentar, de mover a mão direita em volta de mim como se estivesse me benzendo. Não quero que ela pare.Começo a entender aquelas palavras... ela está tirando a minha doença de mim. No dia seguinte acordo sem febre ainda com o som daquelas palavras na minha mente.Lembro que cheguei a anotar num caderno pra não esquecer a som delas. Resolvo ir pra escola. Minha mãe chega no quarto e não consegue acreditar. Briga comigo porque estou sem a tipóia e então digo feliz olhando pra ela que não preciso mais usar. Não sinto mais nada. A dor sumiu.Eu tinha 14 anos e descobrira que eu era bem diferente das crianças protegidas pelos anjos das belas litografias na Bíblia e nos livros da evangelização cristã. Mas sabia que ali não conseguiria nenhuma resposta de quem eu era. Achava injusto aquilo mas não estava triste.Estava aliviada. Instintivamente sabia que tinha me libertado. Mas não sabia bem de quê também tinha descoberto que não havia nada de errado comigo. Eu só era diferente.
MEU AVÔ AFRICANO
Foi nessa época que comecei a querer entender o porquê de sermos tão diferentes.Eu, minha mãe e meus irmãos. Dos netos da minha avó, mãe do meu pai, nós éramos os mais morenos e os mais diferentes. Não tinhamos a pele clara e nem olhos de cor como minha prima e meus primos. Comecei a conversar com alguns parentes de minha mãe. Não dava pra perguntar diretamente pra ela. Não me sentia a vontade pra fazer isso. E depois havia meus irmãos. Quatro no total, cinco comigo que era a mais velha e mais calada, e por isso era bem mais fácil de "futucar" as informações. Minha mãe estava sempre muito ocupada e uma única vez que falou do assunto ela havia dito que por se a caçula não lembrava de quase nada. Assim acabei descobrindo que meu avô era negro e teria vindo lá dos lados de São Paulo. Era muito "brabo", trabalhador, honesto e tinha um dom muito especial. Pelo que me foi falado meu avõ era uma espécie de curandeiro da roça. Também rezava, quer dizer, fazia benzimentos. Tinha conhecimentos terapêuticos de certas plantas encontradas na mata e que podiam curar várias enfermidades. Me foi falado que até veneno de cobra ele curava. Fiquei impressionada! Percebi o quanto era importante pra mim descobrir mais sobre meu avõ. Sentia que quanto mais procurava por ele mais encontrava respostas pra mim. Também comecei a entender meus sonhos com pessoas tão negras, tão belas, tão especiais... eles pareciam não serem humanos. E não eram. Eles eram como deuses. Eles eram orixás. Na verdade eles eram os meus orixás, da minha terra de origem e origem do meu avô. Uma terra linda, a África, a minha terra e do meu avô. Mas até chegar a esse entendimento um caminho muito longo foi percorrido e continua a ser trilhado através dos meus filhos e netos e os filhos deles. Algo que não terá fim.Finalmente eu tinha encontrado meu anjo. Naquela época fiquei por muito tempo sentindo a presença do meu avô. Agora que sabia como havia sido a vida dele tinha a sensação de tê-lo conhecido pessoalmente. Todas as pessoas que encontrava e que o tinham conhecido em vida falavam dele com tanta admiração, respeito e carinho, quase com devoção. Eram tantas as histórias e com detalhes tão minuciosos! E havia as coincidências! Pessoas diferentes falavam as mesmas coisas dele! A personalidade do meu avô era tão marcante que havia impressionado aquelas pessoas tão simples de uma forma decisiva! Tão decisiva que hoje ao falar dele quase cinquenta anos após o seu falecimento nada mudou! Meu querido anjo da guarda, meu querido avô, que faleceu poucos meses antes do meu nascimento, tornara-se o um exemplo pra mim. Um modelo a ser seguido. Ainda hoje lembrando aquelas descobertas iniciais sinto a sua presença e fico muitíssimo emocionada!






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